Se a vida fosse mais coerente
03/04/21
Glória e castigo
Que é que sei sobre domínio?
Quero chegar numa manhã dessas
Que amanhecendo um qualquer
Entardecerás com a convicção de que és amado
E pela noite declararás que estás sob nova direção.
Mas o que é que sei sobre domínio?
Desisto fácil
Desisto da caneca de chá quando esfria, ainda que minha garganta tenha a façanha de poder reaquecê-lo.
Da morte! Quando me ocorre que pouco cabe no seu leito estreito.
Queria poder carregar no ouvido a canção que insiste em me esperançar.
Desisto de debates que ameaçam rasgos fundos, os quais nenhum ser vivo merece.
Você nem sabe! Desisti de te falar, quando não fez da minha notícia, evento único…
Morrer ou matar? (Poeta de um poema só)
Outro dia li um poeta que descarregou as balas todas num poema só
Sentenciou a tinta a secar ao final do último verso.
Poderia ter dormido pela metade do texto
Mas é preciso ter coragem pra tomar para si o descanso da mente sobre uma mira (rima) revoltada.
Monólogo da Esperança II
Eu moro onde não mora ninguém
Onde a ordem de despejo não chega,
pois não há o que se requerer
Eu moro no suor que resiste e não morre na trama do tecido
Onde o relógio só tem o ponteiro dos minutos
Na resistência da erva que nasce nos rasgos do asfalto
Na artéria entupida esmagando o fluxo sanguíneo
Moro nos arrepios e nas rendições aos tesões
Nas mão que curam, ensinam, fundem,
que pavimentam caminhos e edificam pontes
Eu moro na solidão e no coro dos contentes
Na cicatrização da ferida
Moro na utopia que passa pela sua língua e atravessa os seus lábios
No batuque solitário do seu coração
Moro nas dores do ventre que parirá um filho
Eu nasço na coragem
Eu cresço na falta da liberdade
Nas rugas e fugas, nas voltas e revoltas.
Monólogo da Esperança I
Você é o complexo que espero compreender, nem que seja na efemeridade duma noite de sábado que te faltar o juízo.
Aos pedaços me despeço
Me roubaram o sonho,
O entusiasmo
E o nome intransferível.
Me cortaram as asas no percurso do voo
e o céu despencou em chuva de choro.
Minha língua expele amargura.
Não há beijo com paladar que me beije,
não há carinho mais marcante que as pedras sobre minha cabeça,
não há corpo macio que meus ossos possam repousar.
Minha salvação não vale os meus amores
e as injustiças não merecem minha salvação.
Me tiraram o direito da morte,
Porque em meu nome não há terra para que me cubram.
O que podia ser salvo fracionei entre os pedintes.
E o restante de meu tempo
Meu sangue
Minha carne
Apodrecem de dentro pra fora e até o odor se abstém de mim.
Ceifaram tudo,
Meu descanso em paz.
Há tempo que o luto tem a chave de casa
e ensaia a cerimônia triunfal.