03/04/21

Glória e castigo

Se a vida fosse mais coerente 

As incisões seriam mais limpas  
E as suturas, mais firmes 
 
A predileção voluntária pela obsolescência programada 
E a apropriação indébita da terra não mapeada e do curso desconhecido, 
Seriam... coisas incompreensíveis 

O futuro das relações inter-espécies,
Talvez, não estaria destinado a se acabar em resquícios de detritos 

Se a vida fosse mais coerente
Numerar os nomeáveis, 
Seria inadmissível

Todas as mães teriam tempo para administrar as próprias expectativas 
E os seus filhos... 
Os filhos... 
As adorariam como se tivessem pendurado a Lua no mundo

Ninguém poderia ter bancos aquecidos para as manhãs frias 
Se houvesse um pai no mundo, que não tivesse pão e leite no bolso 

E se fosse mais coerente 
Deixaria de existir o catálogo inteiro das minhas utopias.

Que é que sei sobre domínio?

Quero chegar numa manhã dessas 

Que amanhecendo um qualquer 

Entardecerás com a convicção de que és amado 

E pela noite declararás que estás sob nova direção. 

Mas o que é que sei sobre domínio?

Desisto fácil

Desisto da caneca de chá quando esfria, ainda que minha garganta tenha a façanha de poder reaquecê-lo.

Da morte! Quando me ocorre que pouco cabe no seu leito estreito. 

Queria poder carregar no ouvido a canção que insiste em me esperançar.

Desisto de debates que ameaçam rasgos fundos, os quais nenhum ser vivo merece.

Você nem sabe! Desisti de te falar, quando não fez da minha notícia, evento único…

Morrer ou matar? (Poeta de um poema só)

Outro dia li um poeta que descarregou as balas todas num poema só 

Sentenciou a tinta a secar ao final do último verso.

Poderia ter dormido pela metade do texto

Mas é preciso ter coragem pra tomar para si o descanso da mente sobre uma mira (rima) revoltada.

Monólogo da Esperança II

Eu moro onde não mora ninguém

Onde a ordem de despejo não chega, 

pois não há o que se requerer

Eu moro no suor que resiste e não morre na trama do tecido

Onde o relógio só tem o ponteiro dos minutos

Na resistência da erva que nasce nos rasgos do asfalto

Na artéria entupida esmagando o fluxo sanguíneo

Moro nos arrepios e nas rendições aos tesões

Nas mão que curam, ensinam, fundem,

que pavimentam caminhos e edificam pontes

Eu moro na solidão e no coro dos contentes

Na cicatrização da ferida

Moro na utopia que passa pela sua língua e atravessa os seus lábios

No batuque solitário do seu coração

Moro nas dores do ventre que parirá um filho 

Eu nasço na coragem

Eu cresço na falta da liberdade

Nas rugas e fugas, nas voltas e revoltas.

Monólogo da Esperança I

Você é o complexo que espero compreender, nem que seja na efemeridade duma noite de sábado que te faltar o juízo.

Aos pedaços me despeço

Me roubaram o sonho,

O entusiasmo

E o nome intransferível.


Me cortaram as asas no percurso do voo

e o céu despencou em chuva de choro.


Minha língua expele amargura.

Não há beijo com paladar que me beije,

não há carinho mais marcante que as pedras sobre minha cabeça,

não há corpo macio que meus ossos possam repousar.


Minha salvação não vale os meus amores

e as injustiças não merecem minha salvação.


Me tiraram o direito da morte,

Porque em meu nome não há terra para que me cubram.


O que podia ser salvo fracionei entre os pedintes.

E o restante de meu tempo

Meu sangue

Minha carne

Apodrecem de dentro pra fora e até o odor se abstém de mim.


Ceifaram tudo,

Meu descanso em paz.


Há tempo que o luto tem a chave de casa

e ensaia a cerimônia triunfal.