29/01/22

Nem bruxa, nem fada

O relógio, juiz do tempo, imparcial tique-taquea para o paciente paliativo e para o indivíduo saudável. Por que eu… eu, mais uma mera semelhança humana, precisaria ser parcial com alguma causa ou coisa?

Eu queria poder ser mágica e também desencantada; nem bruxa, nem fada; me afixar no ponto mais central para não correr o risco de pendular para qualquer outra parte. Até que, por várias vezes, me deixaram com as palavras na boca; até que fui alvo, sem pedir nem saber; até que incorrespondida e perdidamente me apaixonei pela primeira vez. Todos eram parciais com os seus fatos favoritos.

Me percebi presa nas bordas exteriores, sem saber como participar. Escolher um time para a batalha não era minha virtude, mas mesmo que eu não jogasse, ainda poderia perder.

E sabe o quê? Não jogar, também era um jogo. Eu teria que me pôr a um lado, racionalizar a minha energia que seria consumida estando estática ou em queda livre.

Então ‘acordei’ querendo 'curar o mundo’ com uma 'massagem’ de cada vez - lúcida e despretensiosamente alucinada -, mesmo sabendo o quanto é lento, metódico e exaustivo.

11/10/21

Fronteiras

Fronteiras não mantém as pessoas lá fora... 

Fronteiras, cercam você, lá dentro.





Anatomia da Grey -  T1:E2 "O primeiro plantão é o mais difícil"

09/10/21

A flor e a náusea - Carlos Drummond de Andrade

 Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?


Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.


Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.


Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.


Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.


Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.


Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.


Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.


Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

03/07/21

É que sou humano…

 As minhas pontas à mostra 

Todas padecem de amarras.


Do lado de dentro,

Sou desobediência em fúria

Sou fronteira sem controle migratório

Sou janela defronte à rua, em descuido

Sou vento frio e violento despetalando flores.


Sou promessa sem pressa

Sou amante impotente

Sou voto de lealdade sussurrado à porta do ouvido

Sou noite fresca de descanso depois do trabalho

Sou solidão permanente

Sou também, um estádio inteiro de esperança, pelo que não se sabe se virá.


(15 jan. 2020)

30/06/21

Quando o amor vacila por Maria Bethânia

(Um dos meus dois poemas favoritos...)

Eu sei que atrás deste universo de aparências,

Das diferenças todas,

A esperança é preservada.


Nas xícaras sujas de ontem

O café de cada manhã é servido.

Mas existe uma palavra que não suporto ouvir,

E dela não me conformo.


Eu acredito em tudo,

Mas eu quero você agora.


Eu te amo pelas tuas faltas,

Pelo teu corpo marcado,

Pelas tuas cicatrizes,

Pelas tuas loucuras todas, minha vida.


Eu amo as tuas mãos,

Mesmo que por causa delas

Eu não saiba o que fazer das minhas.


Amo teu jogo triste.


As tuas roupas sujas

é aqui em casa que eu lavo.


Eu amo a tua alegria.


Mesmo fora de si,

Eu te amo pela tua essência.


Até pelo que você poderia ter sido,

Se a maré das circunstâncias

Não tivesse te banhado

Nas águas do equívoco.


Eu te amo nas horas infernais

E na vida sem tempo, quando,

Sozinha, bordo mais uma toalha

De fim de semana.


Eu te amo pelas crianças e futuras rugas.

Eu te amo pelas tuas ilusões perdidas

E pelos teus sonhos inúteis.


Amo teu sistema de vida e morte.


Eu te amo pelo que se repete

E que nunca é igual.


Eu te amo pelas tuas entradas,

Saídas e bandeiras.


Eu te amo desde os teus pés

Até o que te escapa.


Eu te amo de alma para alma.


E mais que as palavras,

Ainda que seja através delas

Que eu me defenda,

Quando digo que te amo

Mais que o silêncio dos momentos difíceis,

Quando o próprio amor

Vacila.


(autor desconhecido, declamado por Maria Bethânia)

A arte de perder de Elizabeth Bishop

(Um dos meus dois poemas favoritos...)

A arte de perder não é nenhum mistério;

Tantas coisas contêm em si o acidente

De perdê-las, que perder não é nada sério.


Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,

A chave perdida, a hora gasta bestamente.

A arte de perder não é nenhum mistério.


Depois perca mais rápido, com mais critério:

Lugares, nomes, a escala subsequente

Da viagem não feita. Nada disso é sério.


Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero

Lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.


Perdi duas cidades lindas. E um império

Que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.


- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo

que eu amo) não muda nada. Pois é evidente

que a arte de perder não chega a ser mistério

por muito que pareça (Escreve!) muito sério.


(tradução de Paulo Henriques Britto)

12/06/21

Monólogo da esperança III

O corpo recém sem vida, à espera que o despeça. Casa nova, à espera que a ocupem. A vida, à espera do propósito. Um romance, à espera que se emocionem. O balanço, à espera de uma criança. O último porto do mundo, à espera de um navio. O último ponto, à espera do próximo parágrafo. Algemas, à espera do molho de chaves. Uma lâmina, à espera da têmpera. O pão, à espera do paladar. Eu! À espera que você seja o meu par. Em cada canto, perdidos, à espera de encontrarem o caminho. Em cada peito, coração esperando ser ouvido.