30/06/21

A arte de perder de Elizabeth Bishop

(Um dos meus dois poemas favoritos...)

A arte de perder não é nenhum mistério;

Tantas coisas contêm em si o acidente

De perdê-las, que perder não é nada sério.


Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,

A chave perdida, a hora gasta bestamente.

A arte de perder não é nenhum mistério.


Depois perca mais rápido, com mais critério:

Lugares, nomes, a escala subsequente

Da viagem não feita. Nada disso é sério.


Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero

Lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.


Perdi duas cidades lindas. E um império

Que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.


- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo

que eu amo) não muda nada. Pois é evidente

que a arte de perder não chega a ser mistério

por muito que pareça (Escreve!) muito sério.


(tradução de Paulo Henriques Britto)

12/06/21

Monólogo da esperança III

O corpo recém sem vida, à espera que o despeça. Casa nova, à espera que a ocupem. A vida, à espera do propósito. Um romance, à espera que se emocionem. O balanço, à espera de uma criança. O último porto do mundo, à espera de um navio. O último ponto, à espera do próximo parágrafo. Algemas, à espera do molho de chaves. Uma lâmina, à espera da têmpera. O pão, à espera do paladar. Eu! À espera que você seja o meu par. Em cada canto, perdidos, à espera de encontrarem o caminho. Em cada peito, coração esperando ser ouvido.

09/04/21

Infelicidade exposta a visitação pública

Um corpo todo programado para ser herói em tempestade. Nascido no dia que repartiram a coragem. Um cavalheiro nobre sem memória. 

Em registro, nada visto, mais cansativo que caminhar quilômetros do vale das próprias amarguras. 

Na antessala fúnebre, narra a beleza da vida, retoma aos quantos levou a felicidade, como quem conseguirá mais tempo... Mais um monólogo refutável - mas, não fútil - no montante nunca lido.

Sob a pele, os músculos, as vísceras, forma-se uma população toda fundada a duras penas por uma mísera mutação solitária que nada aceita pela metade. Nunca antes, houve quem desejasse tanto o calor de seu corpo, nem mesmo nas vezes que esteve nu. 

Para cada célula que poreja infelicidade, outra que se descobre feliz. O dom da vida.

03/04/21

As rimas

Toda vez que uma rima vem chegando mais perto do final do meu verso, mudo de caminho. 

Que eu não gosto de despertar a expectativa nas frases anteriores, de que elas sempre terão um par. Que nem sempre estaremos cantando juntos, sons idênticos ou semelhantes. Nem mesmo todas as vezes encontraremos timbres que se parecem com o nosso. 

À quem depende das rimas, há uma pequena tragédia no final de cada verso meu.

Memorandos de uma terra distante

São só memorandos

De uma terra distante,

De punhos fatigados do combate, 

De uma mente no meio do delírio da percepção. 

Queria te escrever que descobri algumas verdades fundamentais sobre a realidade 

Que depois disso, 

aceito o estado morno das coisas,

dos humores,

dos humanos.

Que o frio e o quente são extremos exigentes demais para serem constantes! 

Só memorandos...

Onde os arranhões das palavras às folhas 

Contam mais, do que eu a você. 

No livro de alguém eu fui vilão

Por trás dessa minha parcialidade com os fatos que compõem a minha narrativa preferida, existe uma memória viva de todo o meu fracasso, de quando matutava que o "controle de armas significava usar as duas mãos". No livro de alguém eu fui vilão.


*Interprete-se, em armas: toda espécie; em mãos: qualquer algo capaz de contenção.


Viver, amar, curar e prosperar

Nascer e crescer. Inapelavelmente perdida. 

Amar. Pois tudo que está vivo, sem amor, definha.

Construir. Aninhar-se e vê-lo desmoronar um pouco mais a cada inverno. 

Alcançar a maturidade.

Desencarnar. Como um inseto metamórfico, num drama temporal: velha numa cama quentinha.