12/02/23

Usei o último saldo. Passou o último ônibus do bairro. Cheguei ao último instante da hora. Pisei na última loja aberta. Compraram o último par de alianças.

- "É tarde!"

- "A hora ou as alianças?"

Vagando pelas ruas acena-me a Lua; acendem-se os faróis no obscuro da noite. Apresso-me e chamo os teus passos ao lado dos meus.

Ouço um caminhar sereno, anunciando que está aqui. Mas, se fosse você, pisaria com mais certeza.

Certeza! Que não atropelaria as flores e as lesmas do caminho.

É o medo.

Agarro-me à última coragem enquanto balbucio a última canção feita para a solidão - que deve ser o suficiente para eu não tropeçar no caminho.

Há uma última luz acesa na minha rua; há todas as luzes acesas no meu peito.

Volto no outro dia. É cedo, mas descansou o último garimpeiro.

É tarde...

Tomei um banho rápido, não como de costume.  Pressionei com força contra a pele, uma bucha sofredora desde quando era planta, já cansada de trabalhar.

Hoje o dia está triste, que sofra tudo que há em mim.

Decidi não hidratar o corpo - como se o meu hidratante fosse capaz de amaciar coisa alguma –, ainda que cada célula se organize protestando a infelicidade em rachaduras.

Desde cedo que tudo que há em mim está sofrendo.

Assisti a uma história de homens negros escravizados que nem eram cogitados a serem chamados de humanos, mas eu não chorei. Aqui dentro, os responsáveis por operar as glândulas de produção de choro, estão de folga. É sábado, e talvez seja um descanso justo. Não os forçarei a nada, vivemos em uma sociedade livre – ou quase.

São quase quinze e ainda não comi nada. Talvez seja esse o motivo pelo qual minha sociedade interior não queira trabalhar. Mas quando a gente quer alguma coisa, aprendi que essa coisa precisa ser dita. Não ouvi ninguém pedir comida.

Será que essa sociedade dentro de mim entende o meu idioma? Digo que não me pedem as coisas, mas será que sou eu quem não a ouço?

Se os operários responsáveis por salvar as minhas memórias pudessem falar o nosso idioma, diriam o quão péssima pensante sou, pois para quem acabou de ver um filme sobre justiça e liberdade, deveria ousar matutar outras hipóteses.

Como posso pensar que tudo que há, deveria por natureza, me compreender?

Se nem mesmo os homens que amei, que sempre acreditei serem humanos como eu – embora alguma coisa dentro de mim sempre os servissem como se fossem deuses com a minha vida nas mãos –, me entenderam, se nem mesmo… 

É, também há grande chance de eu não saber dizer e nem a hora.

Silêncio

Tem dias que eu queria ter nascido na pele dos meus heróis.

Se eu te contasse em quantos nãos, dei a mão na cara,

em silêncio!

Quantas portas abri com o próprio ódio,

em silêncio!

Quantas vezes sentei à mesa e comi feito rainha,

em silêncio!

Das vezes que eu amei sozinha

Adivinha?

Em silêncio!

Tudo em silêncio!

Se eu te contasse quantos eus eu desmontei

por causa do silêncio!

Numa noite cansada e de tanto ficar calada

Senti a tristeza se instalando no meu peito para a próxima temporada

E se me perguntassem,

se alguém soubesse daquela tristeza recém chegada

E se me perguntasse…

Eu havia deixado a porta entreaberta!

Acordei decidida a silenciar o silêncio.

Quer saber?

Eu diria que a partir de agora, meu propósito era ser bela.

Hoje acordei querendo ser bela.

Quero ter belos ouvidos,

Convencidos de que a nossa história não poderá nunca ser apagada

Belos lábios,

que se fechem ao inconcebível

Belos dentes,

que mordam e cuspam o intragável

Bela língua,

que te beijem em cada uma das vinte e quatro horas dos dias de domingo,

que eu também quero amar.

Quero ser um belo corpo,

que assuma comigo o compromisso da vida

E que por dentro, tem a mesma cor que o seu.

Bela!

Quero ter belos pensamentos

que retomam a fé em todas as manhãs

que desconfiam de tudo que tenha castigo como desfecho

E que também sejam bons em esquecer a realidade.

Belos pés,

que não se cansem de caminhar pelo caminho da esperança

Belas mãos,

que, de dia, afaguem as minhas vaidades

E de noite, cada parte do seu corpo.

Quero ter um belo coração,

de beleza próxima ao daquela bela que te fez querer ficar.

Bela como um broto que insurge no inverno

Que de fato não é belo por ter beleza, mas, porque resiste.

Deve existir algum pequeno mundo na gente

que funciona como uma sociedade

Uma sociedade inteira feita de quem veio antes

Feita de quem navegou sem nenhuma bússola que indicasse a direção da sorte

Que não sabia se o Sol ainda nascia

Porque nos porões era sempre noite.

E se me sobrarem olhos que tenha a menor capacidade de enxergar

Quero ver a beleza da vida simples

Quero viver a beleza da vida, viva.

Tristeza?!

Se me escuta

Esta singela ode é para ti,

Hoje, eu sobrevivi.

Num momento eu tenho uma frota toda de barcos que não flutuam. E depois, depois sou só eu no melhor show da vida: cantando pra surdo ouvir, sem barcos, sem orgulho, nenhuma vergonha, sem culpa, sem nada. Só eu querendo viver o que ainda está rio à frente. Como vou resolver o problema com os barcos que não flutuam, isto é coisa pra depois do show.

09/04/22

Como se eu...

Não me olha assim,

Como se eu tivesse com defeito

Como se eu fosse uma doença genética incompatível com a vida

Como se os meus prazeres fossem inadequados

Como se o meu poeta fosse um amante sórdido, pouco charmoso, pai falho e inconsequente.

Não me olha…

Me olha!

Olha!

Não me fala assim,

Como se eu pudesse suportar o peso das memórias

Como se da sua boca eu pudesse receber a pior notícia

Imediata e irrevogável.

Por que eu posso.

Toma-me aquela chance que me deu dizendo

que poderia,

mas não queria existir num mundo onde não pudesse me amar.

Mas não me fala como se eu fosse

Inautêntica,

irreparável.

Não me fala…

Me fala!

Fala?!

29/01/22

Nem bruxa, nem fada

O relógio, juiz do tempo, imparcial tique-taquea para o paciente paliativo e para o indivíduo saudável. Por que eu… eu, mais uma mera semelhança humana, precisaria ser parcial com alguma causa ou coisa?

Eu queria poder ser mágica e também desencantada; nem bruxa, nem fada; me afixar no ponto mais central para não correr o risco de pendular para qualquer outra parte. Até que, por várias vezes, me deixaram com as palavras na boca; até que fui alvo, sem pedir nem saber; até que incorrespondida e perdidamente me apaixonei pela primeira vez. Todos eram parciais com os seus fatos favoritos.

Me percebi presa nas bordas exteriores, sem saber como participar. Escolher um time para a batalha não era minha virtude, mas mesmo que eu não jogasse, ainda poderia perder.

E sabe o quê? Não jogar, também era um jogo. Eu teria que me pôr a um lado, racionalizar a minha energia que seria consumida estando estática ou em queda livre.

Então ‘acordei’ querendo 'curar o mundo’ com uma 'massagem’ de cada vez - lúcida e despretensiosamente alucinada -, mesmo sabendo o quanto é lento, metódico e exaustivo.

11/10/21

Fronteiras

Fronteiras não mantém as pessoas lá fora... 

Fronteiras, cercam você, lá dentro.





Anatomia da Grey -  T1:E2 "O primeiro plantão é o mais difícil"