12/02/23

Carta desesperada

Tenho vivido dias pacatos. Tanto, que as guerras, nascem e morrem silenciosas no meu peito.

Arritmias tão mal empenhadas, inúteis para causar dano, muito menos, morte súbita.

Sonho com uma cidade pequena do interior com nome de santo. Acordo querendo te convidar para nos mudarmos a uma pequena casa próxima do sossego. Eu nem vou lhe dizer o quanto acredito que crianças são ótimas companhias para qualquer quintal. Para isso, temos as galinhas, os coelhos e os cães. No entanto, se você quiser.

Olha, eu não consigo odiar ninguém, mas odeio essa história de noivas... Essas de véu e vestido, joias raras e penteados caros que choram com as juras de amor como se fosse perecer seu último fôlego. No entanto, se você gostar.

Ainda quero me descobrir mulher, cientista, sua maior fã ou quem sabe, jardineira no fim de semana. Quero ser tão fácil para você, dos trinta aos sessenta. Quero poder ser mágica, fada, correspondidamente apaixonada, como se fosse a primeira vez. Quando me sentir segura, quero provar o quê deixa minha consciência pela metade. Mas, se você estiver.

Eu já nem sou tão jovem. Apesar do meu diagnóstico de indecisão crônica, não guardo a etiqueta de troca, porque isso, ah! Isso é tentar o destino. Mas, se você se for...

Se você for, vou desejar ter penhorado os móveis, os casacos, o nome e ido conhecer as feridas curadas da América Latina. Pois, quem sabe, não teria te conhecido. Vou desejar ter caído aos pedaços de um voo alto de ego com falha na aterrissagem. Vou desejar ter morrido no passado na caixa de spam de alguém com uma descoberta genial.

Então não se atreva a partir. Não terei terminado de amar você.

De fato, se for, sentirei saudade das colheitas ao meio dos sábados. Do ritualístico conflito para a escolha da intensidade da luz do quarto no início da noite. Do beijo rápido e suave pela manhã e outros pequenos hábitos que teríamos pelo resto da vida.

Com tempo, superarei. Isso não é Hollywood. É uma cidade com nome de um santo qualquer, incapaz do menor milagre.

Deixo pronto o prólogo de uma carta tragicamente desesperada a ser publicada numa antologia de baixo apreço: “Você não se parece com nada que eu não tenha motivos para amar...”

O último monólogo da Esperança

Eu que sobrevivi aos romances perdidos

Cavalguei feras indomáveis

Renunciei o medo quando vieram os demônios.


Eu que construí barcos resistentes

que suportaram a viagem e a volta para casa

que pensei que ninguém pudesse me vencer

Subordinadamente aceito a despedida.


Fui voto vencido na minha própria democracia

Soldado eviscerado na guerra que eu comecei.


Entendo que você pode viver sem Esperança

e não é o fim do mundo.

Quero ficar na sua vida,

mas não a qualquer preço.


Contei belas histórias, mas é o meu fim.

Memorandos de uma terra distante

São só memorandos

de uma terra distante

de punhos fatigados do combate

de uma mente no meio do delírio da percepção.


Queria te escrever

que descobri algumas verdades

fundamentais sobre a realidade.


Que depois disso,

aceito o estado morno das coisas, dos humores, humanos

Que o frio e o quente

são extremos exigentes demais para serem constantes!


Só memorandos...

Onde os arranhões das palavras às folhas

contam mais, do que eu a você.

Desejos do fim do mundo

Em casa, à mesa

pedindo-me para comer

para ficar ao teu lado.


Eu fico!

Entrelaço nas pernas

pele, pêlo, pescoço.


Conte-me teus desejos do fim do mundo

que te sirvo, cedo, repito.


Todos meus cantos são teus

tudo, grita o teu nome:

suspiros, gemidos, arrepios.


Entrego-te suor jovem e juízo

E lembro de onde minhas mãos realmente são úteis:

escrevendo!


Poemas, impressões

digitais, arranhões

sem medo ou sentenças

sem pressa ou correntes.


Rendo-me a um vocabulário

que em outras circunstâncias não saberia nem ao meio

Que outro, não o compreenderia.


Repara-me os traços

e os músculos trêmulos no meu corpo.


Viva, ao vivo, escrevo-te

à minha maneira

meu best seller da vida inteira.

Usei o último saldo. Passou o último ônibus do bairro. Cheguei ao último instante da hora. Pisei na última loja aberta. Compraram o último par de alianças.

- "É tarde!"

- "A hora ou as alianças?"

Vagando pelas ruas acena-me a Lua; acendem-se os faróis no obscuro da noite. Apresso-me e chamo os teus passos ao lado dos meus.

Ouço um caminhar sereno, anunciando que está aqui. Mas, se fosse você, pisaria com mais certeza.

Certeza! Que não atropelaria as flores e as lesmas do caminho.

É o medo.

Agarro-me à última coragem enquanto balbucio a última canção feita para a solidão - que deve ser o suficiente para eu não tropeçar no caminho.

Há uma última luz acesa na minha rua; há todas as luzes acesas no meu peito.

Volto no outro dia. É cedo, mas descansou o último garimpeiro.

É tarde...

Tomei um banho rápido, não como de costume.  Pressionei com força contra a pele, uma bucha sofredora desde quando era planta, já cansada de trabalhar.

Hoje o dia está triste, que sofra tudo que há em mim.

Decidi não hidratar o corpo - como se o meu hidratante fosse capaz de amaciar coisa alguma –, ainda que cada célula se organize protestando a infelicidade em rachaduras.

Desde cedo que tudo que há em mim está sofrendo.

Assisti a uma história de homens negros escravizados que nem eram cogitados a serem chamados de humanos, mas eu não chorei. Aqui dentro, os responsáveis por operar as glândulas de produção de choro, estão de folga. É sábado, e talvez seja um descanso justo. Não os forçarei a nada, vivemos em uma sociedade livre – ou quase.

São quase quinze e ainda não comi nada. Talvez seja esse o motivo pelo qual minha sociedade interior não queira trabalhar. Mas quando a gente quer alguma coisa, aprendi que essa coisa precisa ser dita. Não ouvi ninguém pedir comida.

Será que essa sociedade dentro de mim entende o meu idioma? Digo que não me pedem as coisas, mas será que sou eu quem não a ouço?

Se os operários responsáveis por salvar as minhas memórias pudessem falar o nosso idioma, diriam o quão péssima pensante sou, pois para quem acabou de ver um filme sobre justiça e liberdade, deveria ousar matutar outras hipóteses.

Como posso pensar que tudo que há, deveria por natureza, me compreender?

Se nem mesmo os homens que amei, que sempre acreditei serem humanos como eu – embora alguma coisa dentro de mim sempre os servissem como se fossem deuses com a minha vida nas mãos –, me entenderam, se nem mesmo… 

É, também há grande chance de eu não saber dizer e nem a hora.

Silêncio

Tem dias que eu queria ter nascido na pele dos meus heróis.

Se eu te contasse em quantos nãos, dei a mão na cara,

em silêncio!

Quantas portas abri com o próprio ódio,

em silêncio!

Quantas vezes sentei à mesa e comi feito rainha,

em silêncio!

Das vezes que eu amei sozinha

Adivinha?

Em silêncio!

Tudo em silêncio!

Se eu te contasse quantos eus eu desmontei

por causa do silêncio!

Numa noite cansada e de tanto ficar calada

Senti a tristeza se instalando no meu peito para a próxima temporada

E se me perguntassem,

se alguém soubesse daquela tristeza recém chegada

E se me perguntasse…

Eu havia deixado a porta entreaberta!

Acordei decidida a silenciar o silêncio.

Quer saber?

Eu diria que a partir de agora, meu propósito era ser bela.

Hoje acordei querendo ser bela.

Quero ter belos ouvidos,

Convencidos de que a nossa história não poderá nunca ser apagada

Belos lábios,

que se fechem ao inconcebível

Belos dentes,

que mordam e cuspam o intragável

Bela língua,

que te beijem em cada uma das vinte e quatro horas dos dias de domingo,

que eu também quero amar.

Quero ser um belo corpo,

que assuma comigo o compromisso da vida

E que por dentro, tem a mesma cor que o seu.

Bela!

Quero ter belos pensamentos

que retomam a fé em todas as manhãs

que desconfiam de tudo que tenha castigo como desfecho

E que também sejam bons em esquecer a realidade.

Belos pés,

que não se cansem de caminhar pelo caminho da esperança

Belas mãos,

que, de dia, afaguem as minhas vaidades

E de noite, cada parte do seu corpo.

Quero ter um belo coração,

de beleza próxima ao daquela bela que te fez querer ficar.

Bela como um broto que insurge no inverno

Que de fato não é belo por ter beleza, mas, porque resiste.

Deve existir algum pequeno mundo na gente

que funciona como uma sociedade

Uma sociedade inteira feita de quem veio antes

Feita de quem navegou sem nenhuma bússola que indicasse a direção da sorte

Que não sabia se o Sol ainda nascia

Porque nos porões era sempre noite.

E se me sobrarem olhos que tenha a menor capacidade de enxergar

Quero ver a beleza da vida simples

Quero viver a beleza da vida, viva.

Tristeza?!

Se me escuta

Esta singela ode é para ti,

Hoje, eu sobrevivi.

Num momento eu tenho uma frota toda de barcos que não flutuam. E depois, depois sou só eu no melhor show da vida: cantando pra surdo ouvir, sem barcos, sem orgulho, nenhuma vergonha, sem culpa, sem nada. Só eu querendo viver o que ainda está rio à frente. Como vou resolver o problema com os barcos que não flutuam, isto é coisa pra depois do show.